14.5.10

A Partida



Abri meus olhos pela manhã e lembrei tudo o que havia pensado nas noites anteriores de minha existência cansativa e dominada pela vida. Olhei para ela. Estava linda, mais linda do que o normal, e pensei que aquilo era uma ilusão da minha cabeça desistente do homem que eu não havia me tornado, mas que sempre fui. Inclinei meu corpo e a olhei dormir. Sorria e franzia a testa. Imaginei se por algum momento ela pensava em mim, se ainda sonhava comigo, se era feliz. Será que essa mulher me ama? Nunca havia me perguntado isso antes, pois tinha uma arrogância da certeza que sim, mas agora aquilo me martelava a cabeça. Continuei a contemplar e me perguntar por que quando com ela me tornei um só, não a observei todos os dias. Imaginei as manhãs que perderei ao seu lado. Lembrei de seu beijo, como amo ser beijado por ela. Seus braços, suas coxas, seu corpo, seu cheiro... Então com muito esforço levanto meu tronco, me mantenho sentado, me vejo espelho. O que fiz da minha vida? Vou ter coragem de levantar agora e ir embora? São sete anos com ela, só com ela. Nunca traí, mas não tinha novidade na vida, apenas seus constantes cortes de cabelo. À noite eu era um homem decidido, agora não sou nada mais que um sujeito recém acordado com a cara suja. Uma vez nós brigamos e ela sentou aqui como de sempre para se pentear, olhava-se no espelho com a cara de poucos amigos e eu ao seu lado querendo brigar e ela com seu silêncio implacável, olhava para ela mesma naquele estúpido espelho comprado num brechó vagabundo de Belo Horizonte em uma das nossas fracassadas viagens. Ela se olhava e eu idiota ao seu lado. Nunca senti tanta vontade de bater em alguém, esse sentimento se misturava a vontade de tomá-la em meus braços e sentir seu calor. Seu pescoço, a toalha enrolada, a cor de seus cabelos, seus pés... Eu a amo tenho certeza. Mas não posso continuar aqui, tenho que partir e ver o mundo, fugir. Então a olho mais uma vez. Me levanto, estou pronto. Me inclino, beijo primeiro seu queixo delicado depois seu lábios, então seus olhos abrem, me olham primeiro com surpresa pelo beijo, depois com a certeza que sabia que era o último, ela conhecia muito bem o covarde com quem estava casada, sabia que eu a abandonaria um dia. Em um impulso segura meu braço quando tento me afastar, ainda me olhando profundamente como se estivéssemos em uma discussão ou uma declaração não sei, ela me olha fundo. Logo solta minha mão e me permite partir. Então eu saio, pela porta e olho para trás, ela está com os olhos fechados e trêmulos, ela está sofrendo, ela me ama. Mesmo assim eu vou. Então deixo para trás toda uma história, todo um amor, que eu sei que não viverei novamente. Já no carro penso mais uma vez, não imaginei o quanto seria difícil partir. A dor em meu peito parece que vai me partir ao meio. Não tenho ar nos pulmões, não tenho voz, as lágrimas escorrem sem controle.


E ele foi, não foram peças de roupa apenas que ficaram para trás, mas uma vida construída, foram natais e muito mais do que isso, foram olhares, trocas e aconchegos. Ele foi e ela sentiu, sentiu e ainda sente. Ele fez uma escolha e ela também.

Raquel Pimentel

2 comentários:

  1. Forte, decidido. Muito bom o texto. O tempo, o tempo faz a gente decidir, esquecer e crescer. Quando aprendemos que a dor nos amadurece, ai, começamos a sermos livres dela e passamos a desejar novos horizontes. Beijos!

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