26.5.10

Antigamente



... o som da nossa casa não era tão pequeno, não tinha cd com mp3, muito menos um pen drive que cabem mais de mil músicas. As caixas de som eram bem grandes e minha mãe colocava sempre uma plantinha em cima pra enfeitar a sala, que dispunha de poucos móveis, “ano que vem a gente reforma, Rita” sempre respondia meu pai. Era um sofá, um rack mogno, uma mesa de vidro e uma cadeira de plástico que Heraldinho, meu pai, comprou pra Arlindinha, minha Vó sentar quando morou lá em casa durante os belos um ano e sete meses. Quando apareceu um cd da Legião Urbana lá em casa, o "As Quatro Estações", eu não dei tanta importância quanto o meu irmão, Felipe. A banda já havia acabado, o Renato Russo já havia morrido e o cd já tinha uns quatro anos de lançado. Meu irmão deitava com o ouvido colado na caixa e repetia a música dois, dois, e só a dois. Sempre foi assim, tudo que ele gosta, que ele ama, ele gasta e não cansa, o meu irmão é um incansável. Não cansa de repetir, de irritar, de perdoar as mancadas do mundo contra ele, nem de nos fazer esquecer suas teimosias persistentes. Assim como não cansa de mostrar o que ele gosta, mesmo que não mostre nenhum interesse, ele quer que você veja “começou Two and half man Quel, vem ver”, “ pela milésima vez, eu não gosto, é muito machista”, “Fala sério, não gosta, e bom é o quê Gilmore Girls?”, melhor não responder! E foi assim que ele vendo meu interesse no que ele estava tão insistentemente ouvindo que ele tirou a plantinha e virou a caixa. Ficamos horas, horas mesmo, repetindo com as cabecinhas coladas ‘pais e filhos’. A voz do Renato, os olhos emocionados e inebriados com ele cantando “eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar...” ainda hoje é a minha memória mais linda. A camisa laranja três quartos gola canoa do meu pai, minha mãe amavelmente resolvendo tudo e fazendo surpresas só pra ver quem ela ama feliz compõem esse quadro. Agora, o Felipe é o Bam, mora longe de mim, com meu pai. Sua foto está nos meus dois quartos. A gente cresceu, briga como antes e se ama como nunca. Fico sempre imaginando quando vou esquecer a história da borracha milagrosa, que ele "caradepaumente" convenceu nossa inocente mãe que fez todos os apontamentos na mesma página de caderno Tilibra. “Cadê as cópias, Felipe? Você não estudou?”, “estudei sim, mas pra não gastar papel – já era um menino preocupado com o meio ambiente – eu DECOREI, apaguei, e escrevi de novo várias vezes em cima da mesma página”, “que borracha é essa, que fez milagre e deixou a página inteira sem borrões?”. O Felipe estava com duas borrachas na mão, uma de duas cores que serve também pra limpar a memória RAM do PC, e aquelas plásticas com um protetor verde – que hoje tem de todas as cores. Ele escolheu, foi na sorte, essa que nunca o abandonou fez ele entregar a borracha plástica pra minha mãe, que milagrosamente apagou e não manchou a folha “Viu mãe!”. Ela não acreditou, mas fingiu. Eu poderia passar dias escrevendo sobre ele, daria um livro – E meu pai vai dizer quando lê, "não mete essa!". Saindo do ônibus pelo lado errado no Rio, continuar cantando enquanto o baterista briga com homem no meio do show por causa da namorada, fingir que está doente pra não ir a aula, só coisa do Bam mesmo. A maioria das pessoas que tiveram a sorte de ter um irmão, com certeza tem histórias como as minhas, não somos uma dupla perfeita, mas ele se importa comigo e eu com ele. Ele me chama de Rabuja, “carinhoso” de rabugenta, pra pedir as coisas e eu peço tudo a ele. E mesmo você não gostando TANTO, eu vou citar "Dentro da alma, eu sinto mesmo, sem mais nem menos, amo você. A gente briga, mas sou sua fã, sem ressentimentos, sou sua irmã" (Dias e Noites, Sandy e Junior). Te amo.
Raquel Pimentel

14.5.10

A Partida



Abri meus olhos pela manhã e lembrei tudo o que havia pensado nas noites anteriores de minha existência cansativa e dominada pela vida. Olhei para ela. Estava linda, mais linda do que o normal, e pensei que aquilo era uma ilusão da minha cabeça desistente do homem que eu não havia me tornado, mas que sempre fui. Inclinei meu corpo e a olhei dormir. Sorria e franzia a testa. Imaginei se por algum momento ela pensava em mim, se ainda sonhava comigo, se era feliz. Será que essa mulher me ama? Nunca havia me perguntado isso antes, pois tinha uma arrogância da certeza que sim, mas agora aquilo me martelava a cabeça. Continuei a contemplar e me perguntar por que quando com ela me tornei um só, não a observei todos os dias. Imaginei as manhãs que perderei ao seu lado. Lembrei de seu beijo, como amo ser beijado por ela. Seus braços, suas coxas, seu corpo, seu cheiro... Então com muito esforço levanto meu tronco, me mantenho sentado, me vejo espelho. O que fiz da minha vida? Vou ter coragem de levantar agora e ir embora? São sete anos com ela, só com ela. Nunca traí, mas não tinha novidade na vida, apenas seus constantes cortes de cabelo. À noite eu era um homem decidido, agora não sou nada mais que um sujeito recém acordado com a cara suja. Uma vez nós brigamos e ela sentou aqui como de sempre para se pentear, olhava-se no espelho com a cara de poucos amigos e eu ao seu lado querendo brigar e ela com seu silêncio implacável, olhava para ela mesma naquele estúpido espelho comprado num brechó vagabundo de Belo Horizonte em uma das nossas fracassadas viagens. Ela se olhava e eu idiota ao seu lado. Nunca senti tanta vontade de bater em alguém, esse sentimento se misturava a vontade de tomá-la em meus braços e sentir seu calor. Seu pescoço, a toalha enrolada, a cor de seus cabelos, seus pés... Eu a amo tenho certeza. Mas não posso continuar aqui, tenho que partir e ver o mundo, fugir. Então a olho mais uma vez. Me levanto, estou pronto. Me inclino, beijo primeiro seu queixo delicado depois seu lábios, então seus olhos abrem, me olham primeiro com surpresa pelo beijo, depois com a certeza que sabia que era o último, ela conhecia muito bem o covarde com quem estava casada, sabia que eu a abandonaria um dia. Em um impulso segura meu braço quando tento me afastar, ainda me olhando profundamente como se estivéssemos em uma discussão ou uma declaração não sei, ela me olha fundo. Logo solta minha mão e me permite partir. Então eu saio, pela porta e olho para trás, ela está com os olhos fechados e trêmulos, ela está sofrendo, ela me ama. Mesmo assim eu vou. Então deixo para trás toda uma história, todo um amor, que eu sei que não viverei novamente. Já no carro penso mais uma vez, não imaginei o quanto seria difícil partir. A dor em meu peito parece que vai me partir ao meio. Não tenho ar nos pulmões, não tenho voz, as lágrimas escorrem sem controle.


E ele foi, não foram peças de roupa apenas que ficaram para trás, mas uma vida construída, foram natais e muito mais do que isso, foram olhares, trocas e aconchegos. Ele foi e ela sentiu, sentiu e ainda sente. Ele fez uma escolha e ela também.

Raquel Pimentel